domingo, 21 de abril de 2024

Declaração sobre a dignidade humana. 1 Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 20 abril 2024

 Declaração sobre a dignidade humana. 1

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

20 abril 2024

No passado dia 8, o Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração
Dignitas infinita (Dignidade infinita), um documento elaborado ao longo de 8 anos pelo
Dicastério da Doutrina da Fé, presidido desde 2023 pelo teólogo argentino cardeal Victor
Manuel Fernández. Nela, que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, onde a palavra dignidade aparece cinco vezes e é declarada
como “intrínseca a todos os membros da família humana” e que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, tudo gira, como diz o título - Dignidade
infinita - à volta da dignidade humana, “uma questão central no pensamento cristão”, como
sublinhou o prefeito do Dicastério. De facto, o que é o Evangelho senão uma notícia boa e
felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, tendo todos os homens e mulheres a dignidade soberana
de filhos de Deus?

Esta dignidade é “ontológica”, portanto, inerente ao ser humano de modo intrínseco e
inalienável em qualquer circunstância, pertence-lhe pelo simples facto de existir. É
concedida por Deus que, como diz o livro do Génesis, “criou o Homem à sua imagem e
semelhança”, imagem indelével. “A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma
absolutamente a dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de
Deus e salva em Jesus Cristo”, “dignidade inalienável que corresponde à natureza humana,
para lá de qualquer mudança cultural”, “um dom recebido”, presente “numa criança não-
nascida, numa pessoa inconsciente, num ancião em agonia”. “A Igreja proclama a igual
dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das
suas qualidades.” Jesus identificou-se com os últimos e ao ressuscitar revelou-nos que “o
aspecto mais sublime da dignidade do Homem consiste na sua vocação à comunhão com
Deus.”

Também pela razão o ser humano conclui pela sua dignidade inviolável: quando, por
exemplo, reflecte sobre a liberdade - auto-possui-se, é senhor de si, um animal que tem
linguagem (zôon lógon échon) e, por isso, animal político (zôon politikón), como bem viu
Aristóteles: capaz de distinguir o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o
injusto, - e sobre si mesmo: auto-consciente, consciente de que é consciente, afirmando-se
como um eu único e perguntando ao infinito pelo Infinito, Deus...

Mas, na Declaração insiste-se na fundamentação na fé. E só posso estar de acordo com o
teólogo José L. González Faus, quando escreve que, embora melhorável - ao longo da
exposição também levantarei interrogações a confirmá-lo -, o documento “constitui uma
fundamentação de e um apelo a essa tarefa hoje tão urgente e comum a crentes e não-
crentes: a fé na absoluta dignidade do ser humano e o imperativo categórico de trabalhar
pelo respeito dessa dignidade como a tarefa mais importante no mundo de hoje”,
contribuindo, assim, para “um mundo menos cruel e menos triste”.

Desgraçadamente, como sublinhou o cardeal prefeito do Dicastério, “a dignidade humana
não é algo que a Igreja tenha reconhecido sempre com a mesma clareza: houve um
crescimento na compreensão. Acrescenta-se, aprofunda-se a compreensão, notamos que no
interior da própria Bíblia há uma explicação crescente.” E lembrou, como exemplo, que, se
em 1452 o Papa Nicolau V numa carta aos reis de Portugal tinha justificado e até ordenado a
escravatura - cito parte da Bula, que constitui, no meu entender, uma das maiores
vergonhas da Igreja: “Nós... concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar,
combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em
qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados principados, domínios, possessões... e
reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos...” -, Paulo III, em 1537, lançou a
excomunhão sobre quem a defendia, pois tratava-se “de humanos.
 Para sublinhar que nunca se perde a dignidade intrínseca, o documento apresenta a
dignidade segundo quatro dimensões: precisamente a dignidade ontológica; a dignidade
moral, que se refere à liberdade e ao seu exercício; a dignidade social, que se refere às
condições de vida; a dignidade existencial, em conexão com o modo como nos apercebemos
da própria dignidade: “Hoje fala-se cada vez mais de uma vida ‘digna’ e de uma vida
‘indigna’; referimo-nos a situações propriamente existenciais, por exemplo, o caso de uma
pessoa que, embora nada de essencial para viver lhe falte, tem, por diversas razões,
dificuldades para viver na paz, na alegria e na esperança.”
Referindo-se a esta “distinção entre a dignidade ontológica que nunca se perde e outra
social, moral e existencial que podem crescer ou diminuir com as circunstâncias da vida”, o
cardeal esclarece: “Posso ter uma vida indigna, mas nunca perco a inalienável dignidade
humana. Os outros podem fazer com que eu leve uma vida indigna, mas nunca me tiram a
dignidade por ser humano: a dignidade é a mesma para alguém nascido na Itália ou na
Etiópia, em Israel ou em Gaza. É exactamente a dignidade inalienável. Não há nenhuma
circunstância que faça com que uma pessoa tenha menos valor, a sua dignidade permanece
inviolável em qualquer contexto, situação, cultura.”
Este esclarecimento é importante, para não dizer decisivo, pois chave essencial de leitura
da Declaração é ver a dignidade, sempre, “para lá de toda a circunstância”. Continuaremos.

CUIDADOS PALIATIVOS Frei Bento Domingues, O.P. 21 Abril 2024

 

1. Dois acontecimentos recentes e inapagáveis sobre a doença e o sofrimento, a dor.

No passado mês de Fevereiro, o Papa Francisco fez um vídeo que podíamos resumir da seguinte forma: existem doenças incuráveis, mas não existem doenças incuidáveis. Esta é uma distinção que nunca deve ser esquecida nem confundida. O sofrimento é omnipresente e são necessários cuidados para não ser destrutivo. A pessoa doente precisa sempre de cuidados médicos, humanos e espirituais de proximidade, mesmo que a doença seja ou não incurável.

A pior das doenças é aquela que confunde estas duas realidades, pois colocamos o doente diante de uma situação que parece inultrapassável. Ao tornar esta distinção operacional, estamos a abrir uma janela onde se julgava um presente e um futuro sem horizonte. Esta atitude positiva não afecta só as pessoas doentes. Afecta a pior das doenças que é a indiferença perante a dor dos outros.

No dia 13 deste mês, o 7Margens publicou uma entrevista com Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP). Esta entrevista merece ser lida, na íntegra, por muita gente porque vem mostrar que é possível reunir muitas mais pessoas em todos os aspectos da vida. É muita a dor a precisar destes cuidados e, muitas vezes, nem se sabe que existem ou podem vir a existir.

Segundo a informação do 7Margens, Catarina Pazes trabalha em equipa para trazer vida a pessoas doentes, em situação de extrema fragilidade. É enfermeira especialista em cuidados paliativos, trabalha na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e dedica-se também à vida académica. Depois de ter concluído licenciatura em enfermagem, fez mestrado, assim como diversas pós-graduações, na área dos cuidados paliativos; neste momento, frequenta o doutoramento em cuidados paliativos na Universidade do Porto. Reconhecida pelos seus pares, foi eleita como presidente da APCP para o triénio 2024-2026.

Segundo esta especialista, «os cuidados paliativos são uma especialidade clínica, de saúde, de alívio, de prevenção de sofrimento que decorre de doenças. Esta é a designação mais formal. Paliativo vem da palavra palium, que tem um significado relacionado com manto, proteção, cuidado; tem a ver com a proteção, o manto que protege face ao frio, às intempéries. São cuidados que protegem a pessoa do sofrimento que está a acontecer e daquele que possa vir a acontecer por causa de uma doença grave».

Usar a palavra paliativo apenas para situações extremas da doença é um equívoco, «porque o sofrimento não existe apenas no fim da vida. Como são cuidados especializados em tratar sofrimento e o sofrimento não faz parte apenas do final da vida, não faria sentido… Mas foi assim que eles nasceram. Os cuidados paliativos nasceram como uma resposta aos doentes que não tinham cura».

O que é o sofrimento? É algo muito individual, muito próprio de cada um e para cada um é algo diferente. O sofrimento pode ser físico, emocional, psicológico. Por isso é que os cuidados paliativos, para responderem aos vários aspectos do sofrimento, têm de ser um trabalho em equipa. Tem de ser uma equipa multidisciplinar, precisamente porque o sofrimento tem multidimensões. E acaba por ter de ser essa boa articulação, entre vários profissionais, que vão responder às necessidades das pessoas[1].

Os recursos que se gastam a destruir a vida de pessoas e sociedades, através das guerras, com o sofrimento e a destruição que provocam, já era tempo de serem usados para superar vinganças, ódios, que só aumentam a dor no mundo.

O que fazer e como fazer? A primeira coisa é a formação de profissionais que têm de intervir, especialmente, os profissionais de saúde – de medicina e enfermagem – de serviço social e de psicologia.

Catarina Pazes é muito explícita: «Aquilo que nós aprendemos quando fazemos a formação em cuidados paliativos como ferramentas para lidar com as adversidades… quando agarramos nisso, quando vamos aplicar isso com o doente e com a família, há uma obrigatoriedade na verdade. Tem de ser verdade, tem de ser completamente genuíno. Ou seja, quando eu estou perante um doente, que até pode ter uma doença avançada, irreversível, e estou a trabalhar com ele a possibilidade de ele conseguir sentir-se bem apesar da doença, viver em pleno apesar da doença, ser feliz apesar da doença, eu só posso fazer isto se eu acreditar completamente que é possível viver feliz apesar da doença. Se isto em mim não for claro e não for verdade, não o posso fazer, não consigo fazer este trabalho.

Exige um trabalho importante dentro de nós, que é uma compensação enorme por termos escolhido cuidados paliativos, porque nos permite um contacto connosco próprios, com a nossa fragilidade, com a nossa vulnerabilidade» e ajudarmos quem sofre. Tem de ser um trabalho feito com paixão.

2. Para trabalhar, neste campo, não é indispensável perguntar se os cuidadores são cristãos, mas que sejam competentes e apaixonados pelo bem das pessoas, seja qual for a situação religiosa, tando dos que beneficiam como dos cuidadores.

Cristão é quem se reconhece e é reconhecido como discípulo de Jesus de Nazaré que passou a sua vida fazendo o bem, como é dito nos Actos dos Apóstolos[2], ou quando foi à sinagoga da sua terra e lhe deram o texto de Isaías para ler que o tomou como tarefa sua: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor[3].

O capítulo 25 de S. Mateus distingue as pessoas que cuidam das pessoas que não cuidam, tanto sob o ponto de vista material como afectivo. Saltou fora do esquema de quem merece e de quem não merece, para ir ao encontro de quem precisa de cuidados.

A liturgia deste Domingo apresenta a figura de Jesus como a do bom pastor que cuida das suas ovelhas e dá a sua vida para que elas tenham vida em plenitude[4]. O que podemos fazer com esta linguagem? Que Cristo e que vida cristã sugere? Não é preciso ser grande exegeta para saber que este texto, e outros semelhantes, não são tratados de pastorícia, mas parábolas de acesso ao mistério da revelação divina e ao mistério que nós somos.

 

 

 

 

 



[1] Cf. Entrevista, 7Margens, 13.04.2024

[2] Act 10, 38

[3] Lc 4, 16-22

[4] Cf. Jo 10, 11-18

sábado, 20 de abril de 2024

“Olhai para Aquele por quem fostes feitos formosos” - Pe Manuel João, MC

 “Olhai para Aquele por quem fostes feitos formosos”

Ano B - Tempo Pascal - 4º Domingo 
João 10,11-18: “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas”

Estamos no quarto domingo de Páscoa, a meio caminho dos cinquenta dias do Tempo Pascal. Todos os anos, neste domingo, lemos uma passagem do capítulo 10 do Evangelho de João, onde Jesus, através de uma alegoria, se apresenta como o bom pastor. É por isso que este domingo é chamado “Domingo do Bom Pastor”O Dia Mundial de Oração pelas Vocações, instituído por Paulo VI em 1964, é celebrado hoje.

Jesus, o grande pastor das ovelhas, de olhos grandes!

A alegoria do pastor exige, antes de mais, o esforço de identificação com uma realidade de uma época que já não é a nossa, para captar a mensagem de Jesus. A imagem do pastor tem uma tradição bíblica tão longa e rica(sobretudo nos profetas) que não podemos prescindir dela. Em torno dela desenvolveu-se uma espiritualidade (ver Salmo 23: “O Senhor é o meu pastor”). 

O Novo Testamento retoma esta tradição fecunda: Jesus é “o grande Pastor das ovelhas” (Hebreus 13,20). Não é, pois, surpreendente que a primeira representação de Jesus nas catacumbas seja a do “bom pastor”, séculos antes do crucifixo. No túmulo de um cristão do final do século II, encontramos esta inscrição: “Sou discípulo de um santo pastor que tem olhos grandes, o seu olhar chega a toda a gente”.

A principal caraterística do bom pastor é o facto de “dar a vida pelas ovelhas”. Dar a vida é o maior amor. “O Bom Pastor é a versão doce do crucificado. Doce apenas a nível figurativo, porque a substância é a mesma. Não é por acaso que, na passagem de João, a expressão “dar a vida” é a que explica o significado de “bom”, e repete-se nada menos que cinco vezes” (D. Pezzini).

Jesus, epifania da bondade e da beleza de Deus

“Eu sou o bom pastor!”. Note-se, porém, que o adjetivo grego utilizado pelo evangelista não é “agathòs” (bom), mas “kalòs”, ou seja, belo. Assim, a tradução literal seria: “Eu sou pastor belo” ou “o pastor formoso“! Isto pode dar-nos uma outra perspetiva da bondade. A bondade torna a pessoa bela e a beleza é a irradiação da bondade (Platão). Jesus é a epifania não só da bondade, mas também da beleza.

A beleza e a bondade estão entrelaçadas. [...] No Antigo Testamento encontramos 741 vezes o adjetivo tôb (também pronunciado tôv), e o seu significado oscila precisamente entre 'bom' e 'belo', de modo que a bondade e a beleza, a ética e a estética são duas faces da mesma realidade” (Gianfranco Ravasi). Hoje, a Palavra do “Bom/Belo Pastor” poderia traduzir-se num convite: “Provai e vede como o Senhor é bom/belo!” (Salmo 34,9). Ele é, de facto, “o mais formoso entre os filhos dos homens” (Salmo 45,3).

O mundo precisa de beleza

A beleza, a harmonia estética, é um caminho para Deus,que talvez não tenhamos explorado suficientemente e ao qual a humanidade é hoje particularmente sensível. Hoje, quando a beleza estética é tão cultivada, o cristão é chamado a dar testemunho da beleza, reflectindo a beleza do seu Senhor (2 Coríntios 3,18). Santo Agostinho diz: “Olhai para Aquele por quem fostes feitos formosos”.

Poderíamos dizer que cultivar e testemunhar a beleza de Cristo é uma forma de definir a nossa vocação. O Papa exprime-o bem na sua mensagem para este Dia das Vocações: “O Dia Mundial de Oração pelas Vocações convida-nos, todos os anos, a considerar o dom precioso do chamamento que o Senhor dirige a cada um de nós, seu povo fiel em caminho, para que participemos no seu projeto de amor e encarnemos a beleza do Evangelho nos diversos estados de vida”. 

Dostoevsky escreveu no seu romance “O Idiota“: “A beleza salvará o mundo”. Carlo Maria Martini retomou esta expressão na sua carta pastoral “Que beleza salvará o mundo?” (1999). Escreveu: “Não basta deplorar e denunciar a fealdade do nosso mundo. Também não basta, para a nossa época desencantada, falar de justiça, de deveres, de bem comum, de programas pastorais, de exigências evangélicas. É preciso falar dela com o coração cheio de amor compassivo, experimentando aquela caridade que dá com alegria e suscita entusiasmo: é preciso irradiar a beleza do que é verdadeiro e justo na vida, porque só esta beleza encanta verdadeiramente os corações e os converte a Deus”. Disse ainda:
“O que nos leva a procurar tão intensamente a beleza de Deus revelada na Páscoa é também o seu contrário, ou seja, a negação da beleza. A verdadeira beleza é negada onde o mal parece triunfar, onde a violência e o ódio tomam o lugar do amor e a opressão o da justiça. Mas a verdadeira beleza é também negada onde já não há alegria, sobretudo onde o coração dos crentes parece ter-se rendido à evidência do mal, onde falta o entusiasmo da vida de fé e já não irradia o fervor dos que acreditam e seguem o Senhor da história”.

Temos aqui matéria para um sério exame de consciênciapara cada um de nós, para as nossas comunidades e para a Igreja! Queixamo-nos muitas vezes que as pessoas se afastam da fé e que as igrejas se esvaziam. Mas será que a nossa vida, os nossos rostos, as nossas relações reflectem a beleza do “Belo Pastor”?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 18 de abril de 2024

Para uma reflexão completa, ver:https://comboni2000.org/2024/04/19/la-mia-riflessione-domenicale-guarda-a-colui-dal-quale-sei-stato-fatto-bello/

Ver síntese da Mensagem do Papa para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

domingo, 14 de abril de 2024

A IGREJA EM REFORMA PERMANENTE Frei Bento Domingues, O.P. 14 Abril 2024

 

1. É costume dividir, de forma muito simples (talvez de forma simplória), a história da Igreja em três momentos fundamentais: a Igreja dos primeiros séculos, a Igreja da Idade Média e a Igreja da Idade Moderna. O grande inconveniente desta apresentação é continuar a fazer da Igreja o seu centro, algo que o Papa Francisco, com razão, tem rejeitado.

A Igreja, em todas as suas épocas, não pode ser o centro de si mesma. Ela deve remeter continuamente para a prática de Jesus Cristo, testemunhada no Novo Testamento. É Ele o verdadeiro centro insubstituível da Igreja e da humanidade. E porquê? Porque foi Ele que fez da sua vida uma entrega a Deus e a todos os povos, de todos os tempos e lugares. Na sua actividade, num tempo e num lugar históricos e precisos, pela sua união a Deus, attingit omnia tempora et loca[1].

Na sua célebre Exortação Apostólica programática, Evangelii Gaudium, o Papa Francisco, convoca a Igreja a realizar a sua transformação missionária, isto é, a ser uma Igreja «em saída». Não se trata apenas de uma belíssima declaração, mas de tornar toda a Igreja agente de comunhão, participação e missão.

Encontrou, na redescoberta da dimensão sinodal, um caminho para vencer a tentação da Igreja se julgar o centro de si mesma.

A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária [a verdadeira Igreja] experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10) e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva.

 Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja, em conversão, sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se puserdes isto em prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua voz.

Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Deve acompanhar a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e o seu fundamento apostólico. A evangelização exige muita paciência e evita deter-se a considerar as limitações.

Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra se incarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos.

O verdadeiro discípulo sabe oferecer a vida inteira e gastá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes, que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora.

Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e evangeliza-se com a beleza da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso para se dar[2].

2. Nada disto é possível se não fizermos da pastoral um processo de conversão contínuo. É o próprio Papa que nos lembra algo que nunca deve ser esquecido. Ele sabe que, hoje, os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos.

Apesar disso, sublinha que, aquilo que pretende deixar expresso nesta Exortação, possui um significado programático e tem consequências importantes.

«Espero que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão», em todas as regiões da terra»[3].

Já o Papa Paulo VI tinha convidado a alargar o apelo à renovação de modo que ressaltasse, com força, que ela não se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja inteira.

Lembremos, diz Bergoglio, este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».

3. Tornou-se um lugar comum dizer que a Igreja não é o centro do Cristianismo. Ao repetir esta evidência teológica e pastoral, temos de ter cuidado para não dar a ideia de que a Igreja, não sendo o centro, seria insignificante para a fé cristã. Se isso fosse verdade, também seria inútil a reforma das próprias expressões da Igreja. E, no entanto, é ela o verdadeiro e primordial sacramento – sinal e instrumento – de Jesus Cristo na complexidade deste mundo. De facto, quando se fala de reforma da Igreja, não se pode esquecer a observação do grande teólogo, Yve Congar, O.P., ao sustentar que existem verdadeiras e falsas reformas.

«Hoje, torna-se cada vez mais evidente que é necessária uma verdadeira hermenêutica evangélica para compreender melhor a vida, o mundo, os seres humanos; não de uma síntese, mas de uma atmosfera espiritual de investigação e certeza fundamentada nas verdades da razão e da fé», como diz Bergoglio, na Veritatis Gaudium, nº3 (2017).

 

 

 



[1] III q. 56, a. 1-2

[2] Cf. Evangelii Gaudium, nº 24

[3] Cf. Ibidem, nº 25

Saúde, medicina, salvação Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 13 abril 2024

 Saúde, medicina, salvação

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

13 abril 2024

Os doentes estiveram entre as preocupações e cuidados maiores de Jesus. A saúde é, de
facto, um bem precioso, mas só damos por isso, quando a perdemos.

A saúde tem um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui
vários níveis:
a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de
desempenhar normalmente as suas funções;

b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e
capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;

c) a saúde social: se não cuida do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da
harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde?

d) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde
dependerá da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo,
sem poluição sonora;

e) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de
ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são
elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir
contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano.

Depois da Segunda Guerra Mundial, divulgou-se a definição de saúde da Organização
Mundial de Saúde, que a considera “um estado de completo bem-estar físico, mental e
social”. Mas ela foi acusada de dar uma concepção estática de saúde. Haveria também o
perigo de esquecer a capacidade de integração do sofrimento e da própria morte.
Impõe-se, por outro lado, acentuar a importância da relação com o ambiente material e
humano, em constante transformação. Assim, Francisco J. Alarcos, depois de
considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A
saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e
como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a
múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente
tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é
a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de
envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a
morte em paz.”

A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza
e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar
(de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver
em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é
sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da
abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação
positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.

Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a
etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva
em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio,
está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido
holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma
máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo,
estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que,
afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma
existência ameaçada.

Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a
etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com
hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora
e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras
latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo, respectivamente), como pode ver-se, por
exemplo, hoje na palavra hostel, como se o hóspede, enquanto estranho, fosse ou
pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se,
pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo
possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.

É bom saber do sentido holístico de saúde - sem esquecer Kant dizendo que O Céu, para
aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “A esperança, dormir bem, rir
com alegria” -, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para
parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a
beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua
quietude exaltante. Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões,
mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça
hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas
consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da
capacidade para ler, reflectir, estudar...

A saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é cuidar. Cuidar de nós,
cuidar dos outros - a solidão mata -, cuidar da natureza, dos amigos - a vida sem amigos
não presta -, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último. Salus,
salutis dá origem a saúde e a salvação.