quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

NATAL,Sábado e a Tentação do Farisaísmo - PAULO RANGEL in Público de 27 do 12


1.No dia 21 de Dezembro, na
apresentação de votos natalícios
da Cúria romana, o Papa Francisco
fez um discurso veemente e até
severo. Falando sobre os serviços
da Cúria que se dedicam às
relações com o mundo exterior,
foi especialmente duro para com
os destinatários do discurso.
Começou por fazer a denúncia
do risco de fechamento da Igreja sobre si
própria, evocando mesmo o conceito de
“auto-referencialidade”. Foi mais longe e
visou aqueles que constituem obstáculo
à realização de reformas, que vivem dos
grupúsculos e das intrigas de corte, que
se arvoram em vítimas e até que traem a
confiança neles depositada. Mais uma vez,
o Papa Francisco apontou para uma Igreja
aberta ao mundo e que nele esteja ao serviço
dos valores da pessoa.
Por razões que não vêm ao caso, neste
Natal revisitei um texto que escrevi, por
volta de Junho, sobre a passagem do
Evangelho de Mateus relativa à observância
do sábado (Mt 12, 1-13). Passagem, aliás,
sobejamente conhecida e que tem
correspondência em narrações nos outros
dois Evangelhos sinópticos de Marcos
e de Lucas (Mc. 3, 23-28 e Lc 6, 1-11). As
diferenças de texto são belíssimas e põem
em evidência a riqueza de perspectivas
que a personalidade de Jesus suscita, mas
o seu sentido é unívoco: a substância está
acima da forma, a pessoa tem supremacia
sobre o rito, o próximo prevalece sobre a
instituição.
Diante da mensagem de Francisco e tendo
tropeçado nessa breve reflexão sobre aquela
dúzia de versículos de Mateus, talvez esteja
aqui também um ângulo adicional para olhar
o espírito do Natal.
2. Normalmente, alude-se a esta passagem
com uma formulação de Marcos que, por
sinal, não se encontra no texto de Mateus: “O
sábado foi feito por causa do homem e não
o homem por causa do sábado” (Mc 2, 27).
Mas a narração de Mateus tem vários incisos,
verdadeiramente fundamentais, que vão
muito para lá do questionamento do rito.
Dois deles merecem seguramente atenção.
Primeiro: “E se compreendêsseis o que
significa: prefiro a misericórdia ao sacrifício,
não teríeis condenado os que não têm
culpa” (Mt 12, 7). “Prefiro a misericórdia
ao sacrifício” são três palavras de Jesus —
que cita o profeta Oseias — que resumem
toda a sua mensagem. Jesus, que se dispôs
a fazer o maior dos sacrifícios, diz sem subterfúgios: “Prefi ro a misericórdia ao
sacrifício.” Só esta frase, porque sintetiza
com tanta simplicidade o ensinamento de
Jesus, já justificaria a atenção que concita
esta passagem.
3. Segundo: “E nunca lestes na Lei que, ao
Sábado, os sacerdotes no Templo violam o
Sábado e ficam sem culpa? Ora, eu digo-vos
que aqui está Quem é maior que o Templo”
(Mt. 12, 5-6). Jesus fala de Si e diz que Ele
próprio é maior que o templo. Este dito
lembra imediatamente a afirmação de Jesus,
descrita pelos evangelistas: “Destruí este
Templo e eu o reconstruirei em três dias”
(Mt 26, 61; Mt 27, 40; Mc 14, 58; Mc 15, 29; Jo
2, 19-20). O templo de Jerusalém demorara
46 anos a construir, Jesus afirma-se capaz de
o reerguer em três dias. Ora, como esclarece
João, Jesus afinal falava de Si ( Jo 2, 21): Ele era
o templo, seria destruído pela crucificação e
ressuscitaria ao 3.º
dia.
Qual a
importância desta
assunção de Jesus,
note-se, não como
sacerdote, mas sim
como templo? Ou
como “algo” ainda
maior que o templo?
Esta comparação
marca uma
diferença essencial
entre o cristianismo
e outras religiões, no
caso, a judaica. Ser
cristão não é aderir
a uma doutrina, a
uma Lei, a um corpo
de princípios, de
ritos e de práticas.
Ser cristão é aderir a uma pessoa e essa pessoa é Jesus. O que
identifica os cristãos não são os ritos nem os
lugares sagrados que frequentam, o que os
identifica é seguirem Cristo. O templo dos
cristãos não é a “Igreja-instituição” com a
sua hierarquia, a sua cúria, a sua doutrina,
as suas regras. O templo dos cristãos não são
também as “igrejas-edifícios”, os sucedâneos
de sinagogas ou mesquitas. Não. O templo
dos cristãos é Jesus. Ser cristão é aderir a
uma pessoa; Jesus é, pois, neste preciso
sentido, o templo. E porque ser cristão é
aderir a essa relação pessoal, a essa relação
íntima, pode talvez dar-se ainda um passo
mais. Cristo é o templo dos cristãos e estes
são os templos ou o templo de Cristo. Com
efeito, foi Jesus quem disse: “Pois onde
estiverem reunidos em Meu nome dois ou
três, Eu estou no meio deles” (Mt. 18, 20). As
igrejas são templos de Cristo, apenas porque e quando nelas alguém se reúne em Seu
nome. O templo não é o edifício, o templo
são as pessoas. Porque Cristo é templo, os
humanos, que são a Sua Imagem e a Sua
semelhança, estão chamados a ser também
os Seus templos.
4. Deixando de lado estes dois incisos,
voltemos ao sábado e ao ensinamento que
deixa Jesus. Todos sabem o que pretende
Jesus: não há ritual nem preceito religioso
que prevaleça sobre o amor e sobre a prática
do bem. Se sou muçulmano, devo guardar
a sexta, se sou judeu, o sábado, se sou
cristão, o domingo. Mas se o meu irmão ou
até a minha ovelha precisar de mim, não
há nem sexta, nem sábado nem domingo.
Como escrevem os evangelistas: “O Filho do
Homem até do Sábado é Senhor” (Mt 12, 8;
Mc 2, 28; Lc 6, 5). E já agora uma achega que
não é menor, a tradução Filho do Homem
não é exacta: em bom rigor, deveria dizer-se
Filho do Humano ou Filho da Humanidade.
Como esclarece Frederico Lourenço, no
original grego é usada a palavra antropos,
que significa “humano” ou “ser humano” e
não andros, que, essa sim, designa homem
no sentido de “homem-varão”. Jesus é
o Filho da Humanidade, não o filho do
Homem; de resto, é muito mais belo e justo
tratar Jesus por Filho da Humanidade do que
por Filho do Homem.
Jesus é veemente e não faz concessões:
por mais que os fariseus, os fanáticos, os
fundamentalistas, os beatos achem que é
heresia ou blasfémia trabalhar ou curar ao
sábado, Ele responde e dá uma resposta
sem hesitação: “É lícito praticar o bem ao sábado” (Mt. 12, 12).

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